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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Mau atendimento da Delegacia da Mulher foi informado à Sejusp há quase 2 anos

Ofício com revelações similares às feitas pela jornalista Vanessa Ricarte horas antes de ela morrer assassinada foi enviado à secretaria em 2023

Parte das negligências no atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica que vieram a público após a divulgação de um áudio da jornalista Vanessa Ricarte – enviado a uma amiga horas antes de ela ser morta pelo noivo, Caio Nascimento, 35 anos – foi informada há quase dois anos por um grupo composto por mulheres que já precisaram da proteção garantida pela Lei Maria da Penha e agora ajudam as vítimas de agressões.

Um documento endereçado ao titular da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Antônio Carlos Videira, em 23 de março de 2023 e redigido pelo Fórum Permanente pela Vida de Mulheres e Crianças de MS (MCria) – e que o Correio do Estado teve acesso – afirmava que, já naquela época, as mulheres agredidas por seus companheiros também eram vítimas de maus-tratos na delegacia, uma vez que eram submetidas por questionamentos excessivos por parte dos agentes da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam).

“Na Casa da Mulher Brasileira, sediada em Campo Grande, está havendo a revitimização das mulheres que procuram o serviço da Deam”, diz o texto.

O mesmo ofício endereçado a Videira denunciava que, na época, os servidores da Polícia Civil – cujo lema  do distintivo é “servir e proteger” – e outros atendentes da Casa da Mulher Brasileira tentavam fazer com que as vítimas desistissem de registrar  a ocorrência.

“As mulheres, antes de registrarem o boletim de ocorrência [B.O.], são alertadas: ‘[Façam isso] se querem mesmo destruir a vida do ofensor e acabar com a sua família’”, cita o MCria.

Outra frase proferida pelos servidores da Deam e descrita no ofício enviado ao secretário era “se ele [agressor] for preso, quem vai pagar a pensão alimentícia para o seu filho?”.

“Muitas [mulheres] desistem nesse momento de registrar a ocorrência, diante da insistência em dissuadi-las. Para as que persistem, o registro do B.O. demora, em média, sete horas”, acrescenta o documento

Mau atendimento da Delegacia da Mulher foi informado à Sejusp há quase 2 anos

O material ainda informa ao titular da Sejusp que o Instituto de Medicina e Odontologia Legal (Imol) ficava a mais de 10 km da Casa da Mulher Brasileira – o que prejudicava na época o atendimento às vítimas – e ainda denuncia que algumas das delegadas em serviço, além de não atenderem as vítimas, nem sequer atendiam seus advogados.

Esse mesmo documento também relata vários problemas relacionados ao atendimento das crianças vítimas de violência doméstica. Na época, ainda havia a comoção popular pelo assassinato da pequena Sophia de Jesus O’Campo, de 2 anos, morta pelo próprio padastro, Christian Campoçano Leitheim, com a cumplicidade da mãe, Stephanie de Jesus Silva.

O casal foi condenado no ano passado pelo Poder Judiciário, mas o governo do Estado não deu publicidade ao resultado dos procedimentos internos que apuraram a negligência no atendimento ao pai de Sophia, o qual por várias vezes denunciou os maus-tratos e não foi bem acolhido na delegacia.

NEGLIGÊNCIA
Em entrevista ao Correio do Estado, a coordenadora do MCria, Ceureci Fátima Santiago Ramos, afirmou que os problemas denunciados há quase dois anos na Casa da Mulher Brasileira permanecem.

“Eles continuam duvidando da vítima. Eu passei por tudo isso que elas passam. E eu sei disso porque hoje, no MCria, acompanho diariamente as vítimas que nos procuram”, frisou Ceureci, coautora do documento de 2023.

“Em muitos casos, eu faço as vítimas de violência doméstica voltarem à delegacia, porque o que é informado no B.O. está errado. Elas [vítimas] relatam uma coisa e o escrivão, às vezes, relata o que bem entende”, contou.

A ativista ainda acrescentou:

“Certa ocasião, recebi aqui uma mulher com a língua cortada, quase decepada, e no boletim de ocorrência estava escrito vias de fato. Eu voltei com a vítima e conseguimos alterar o boletim para lesão corporal grave e dolosa”, relatou.

Sobre o caso de Vanessa, em que não houve oferta do serviço de escolta ou de retirada de pertences, Ceureci pontuou que isso é mais um dos defeitos no protocolo de proteção à mulher vítima de violência doméstica.

GUARDA MUNICIPAL
Quem faz a retirada dos pertences é a Guarda Civil Metropolitana de Campo Grande (GCM), porém, na maioria dos casos, depois que o pedido é realizado, a escolta para que a mulher volte ao lar onde o agressor está leva no mínimo cinco dias.

“Às vezes, a gente mesmo, no MCria, solicita à GCM a retirada dos pertences. E é um problema, porque a resposta que recebemos  é de que a instituição não tem muitas viaturas e que o agendamento é sempre para uma data distante do dia do registro do B.O.”, explicou Ceureci.

“O que posso dizer é que demora. Quando é um caso de pedido de retirada de pertences, em que se tem urgência, a espera é de 5 a 10 dias. Quando não há urgência, leva de 30 a 40 dias”, acrescentou a coordenadora do MCria.

No ano passado, a prefeita de Campo Grande, Adriane Lopes (PP), comemorou a chegada de uma verba federal de aproximadamente R$ 800 mil para a compra de viaturas para a Patrulha da Maria da Penha, responsável pela escolta das vítimas. O sistema falhou no caso de Vanessa, que foi assassinada em sua casa pelo noivo justamente horas depois de deixar a Casa da Mulher Brasileira com uma medida protetiva em mãos.

“Estou indo com o [cita o nome de um amigo cuja identidade será preservada] na delegacia. Vou chegar com a polícia para tirar ele [Caio Nascimento, seu noivo] de dentro de casa”, disse Vanessa em um áudio enviado a uma amiga e que foi tornado público na sexta-feira.

Em um outro áudio, em tom de desabafo, a vítima se queixou que a delegada da Deam não quis lhe informar nada do histórico de Caio, que tinha até então 13 passagens por agressão – de ex-mulheres até a própria mãe e irmã.

“Está explicado porque não aconteceu nada com o Caio”, falou Vanessa horas antes de ter sido esfaqueada pelo noivo. 

Ela também reclamou do atendimento que teve na repartição pública que deveria ter acionado o protocolo para protegê-la.

“Eu estou bem impactada com o atendimento da Casa da Mulher Brasileira. Assim, sabe? [Se] eu, que tenho toda a instrução, a escolaridade, fui tratada dessa maneira, imagina uma mulher mais vulnerável, pobrezinha, chegar lá toda vulnerável, sem ter uma rede apoio nenhuma? Essas que são mortas, né? Essas que vão para a estatística de feminicídio?”, indagou à amiga. Horas mais tarde, Vanessa foi esfaqueada.

MINISTRA, PREFEITA E GOVERNADOR
Se a Casa da Mulher Brasileira é tripartite, com atribuições da União, do Estado e do município, representantes desses três entes federativos vão se reunir nesta semana, na Capital, para tratar dessas falhas de proteção às vítimas – avisadas há dois anos pelo MCria e que ficaram expostas com o assassinato de Vanessa.

Nesta terça-feira (18), a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, participará de reuniões sobre o atendimento a vítimas de violência doméstica e terá reuniões com o governador Eduardo Riedel (PSDB), com a prefeita Adriane Lopes e com dois representantes do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) – desembargadores Dorival Renato Pavan e Ruy Celso Barbosa Florence, no caso.

No fim de semana, uma equipe do Ministério das Mulheres desembarcou em Campo Grande para se reunir com o colegiado gestor da Casa da Mulher Brasileira. Fazem parte desse grupo ministerial a diretora de Proteção de Direitos, Pagu Rodrigues, a chefe de gabinete da ministra, Katia Guimarães, e Graziele Carra Dias, representando a Ouvidoria da Pasta.

O principal motivo da vinda dessa comitiva para a Capital é dialogar com representantes da rede de atendimento de Campo Grande sobre os serviços prestados no atendimento a mulheres vítimas de violência que buscam ajuda e apoio na Casa da Mulher Brasileira.

DELEGADOS REAGEM
A Associação dos Delegados de Polícia Civil de Mato Grosso do Sul (Adepol-MS) continua insistindo na versão de que os agentes fizeram a sua parte ao oferecer abrigo a Vanessa na Casa da Mulher Brasileira – o que, segundo os oficiais, teria sido recusado por ela.

Nenhum documento nem gravação comprovando a recusa da vítima do serviço oferecido foi apresentado até o momento. O que existe são áudios em que ela narra a expectativa de uma escolta policial.

“A Polícia Civil, por intermédio da Deam, ofereceu todas as orientações e todas as medidas existentes para a tutela da segurança e da vida da vítima”, afirmou a Adepol-MS, por meio de nota.

“[Foi] seguido todo o protocolo operacional existente até então, inclusive com a orientação de a vítima não voltar para a sua residência e permanecer no alojamento da Casa da Mulher Brasileira, sugestão que não foi aceita pela vítima”, complementou a associação.

As alegações presentes na nota da Adepol-MS serão apuradas em um processo administrativo disciplinar da corporação policial. Não há informações se esse processo será escrutinado por outro órgão governamental e se o resultado da investigação, ao fim dela, será tornado público.

A equipe de reportagem do Correio do Estado procurou o titular da Sejusp para um pronunciamento da Pasta. Até o fechamento desta edição, porém, não houve nenhum retorno

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