06/08/2019 08h46 – Atualizado em 06/08/2019 08h46
Artigo – Por que o Governo Militar criou as NRs?
O racionalismo e o pragmatismo nas decisões são marcas frequentemente atribuídas às administrações militares
Por Helena Duarte Romera – Leomar Daroncho – Procuradores do Trabalho
Nesse início de 2019, atendendo ao apelo de parte do empresariado, o Governo Federal anunciou nas redes sociais que pretende reduzir em até 90% as Normas de Segurança do Trabalho. A confusa tese governamental se justificaria “em função de uma normatização absolutamente bizantina, anacrônica e hostil”.
As Normas Regulamentadoras (NRs) determinam medidas mínimas de segurança e saúde ocupacional, complementando a CLT. A criação e a alteração das medidas ocorrem após estudos técnicos com o respaldo da Comissão Tripartite, composta por representantes do governo, de empregadores e dos empregados.
A história das NRs remete à Lei nº 6.514 de 1977, sancionada pelo Presidente da República, General Ernesto Geisel. Em seguida, ainda no governo do General Geisel, o Ministro do Trabalho Arnaldo Prieto publicou a Portaria nº 3.214/1978, contendo 28 NRs. As normas, dispostas em capítulos, organizam, unificam e facilitam a compreensão das medidas mínimas de proteção para cada setor.
Uma das Normas, a NR 12, define referências técnicas, princípios e medidas de proteção para a prevenção de acidentes e doenças do trabalho com máquinas e equipamentos, compreendendo fabricação, importação, comercialização e utilização em todas as atividades econômicas.
Segundo noticiado nas redes sociais, a NR 12 foi uma das primeiras a ser revista, alterando as medidas de proteção coletiva e individual, além da organização do ambiente de trabalho, com segurança em máquinas e equipamentos.
Trata-se justamente de uma das NRs mais importantes, principalmente tendo em consideração a gravidade de lesões que advém do uso de máquinas e equipamentos inadequados, em funções repetitivas e atividades mecânicas pelos operadores das máquinas. A NR 12, assim, tem por objetivo garantir que máquinas e equipamentos sejam seguros para o manuseio pelo trabalhador, com informações abrangentes sobre o ciclo de vida de máquinas e equipamentos, desde o projeto, fabricação, transporte, instalação, utilização, manutenção e descarte, no fim da vida útil.
A preocupante iniciativa não deveria ignorar que o Brasil ainda lida com assustadores indicadores de acidentes de trabalho, justamente no momento em que ainda procuramos os corpos e contamos as vítimas do rompimento da barragem da Vale, em Minas Gerais. Segundo o Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho (MPT/OIT), os acidentes de trabalho produzem uma morte de trabalhador a cada 4,5 horas. São mais de 5 óbitos por dia.
O Brasil ostenta a triste marca de 4,5 milhões de acidentes anuais – equivalente a 1 acidente a cada 49 segundos, com o registro de mais de 16 mil óbitos entre 2012 e 2018. O rombo previdenciário dessa tragédia trabalhista e humana é estimada em R$ 79 bilhões.
Os profissionais que trabalham em contato com máquinas são as vítimas preferencias, tanto no número de ocorrências quanto na gravidade das lesões.
As medidas protetivas da NR 12 são compatíveis com a Convenção 119 da OIT, aprovada na 47ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho de 1963 e ratificada pelo Brasil em 1992. A Convenção estabelece que máquinas movidas por forças não-humanas que representem perigo para a integridade física dos trabalhadores devem ser providas de dispositivos de proteção apropriados, podendo ser proibidas pela legislação ou impedidas por medidas eficazes.
Dada essa realidade brutal, em que pessoas adoecem todos os dias em decorrência de graves acidentes de trabalho, com sequelas graves ou até mesmo a morte, apesar da existência das NRs, surge o questionamento óbvio: qual o sentido de reduzir a proteção?
Que custos a sociedade suportaria com a eliminação do patamar mínimo de segurança?
Em 24 de outubro de 1977, ao submeter ao General Geisel a Exposição de Motivos do Projeto da Lei nº 6.514, que criou as NRs, o Ministro do Trabalho louvou a preocupação do então Presidente com a prevenção dos infortúnios do trabalho. Apresentou dados que comprovavam os resultados de medidas já adotadas: redução de 21% no número de acidentes de 1976 para 1975, evitando a ocorrência de “459.140 acidentes do trabalho, ou seja, 1.506 acidentes do trabalho por dia e a morte de 632 trabalhadores”. Também apresentou os custos diretos e indiretos estimando a economia de “Cr$ 6.740.000.000,00 (seis bilhões, setecentos e quarenta milhões de cruzeiros)”.
Meticuloso, o gestor do Governo Militar reconheceu a contribuição técnica das Universidades e instituições especializadas em segurança, higiene e medicina do trabalho de “mais de 46.000 técnicos, entre engenheiros de segurança, médicos do trabalho, enfermeiros e auxiliares de enfermagem do trabalho e supervisores de segurança do trabalho”.
Resumindo, justificou a necessidade de atualização da CLT de modo a impedir que a atividade empresarial fosse empreendida com “grave e iminente risco para o trabalhador”.
Não há dúvidas, pelos dados disponíveis, que o quadro segue muito preocupante. O trabalhador, tal como na década de 1970, permanece sujeito a graves riscos no trabalho. Permanece sob o risco de não retornar para casa, quando sai para o exercício da função que garante o sustento de sua família, mesmo que a Constituição anuncie o direito ao meio ambiente de trabalho hígido e equilibrado para todos.
Não há mudança fática que justifique a diminuição da proteção assegurada pelas NRs. Muito pelo contrário. O trabalhador brasileiro, em tempos de intenso crescimento de ocupações precárias e do “subemprego”, encontra-se ainda mais vulnerável e desamparado. Se no papel o meio ambiente de trabalho é direito de todos, independente do formato que se dê à relação de trabalho, sabemos que trabalhadores terceirizados, por exemplo, são as principais vítimas fatais de acidentes do trabalho no Brasil. A tendência para o desastre é clara, pois a precarização atinge todos os níveis da vida laboral – inclusive o da proteção da saúde e da segurança do trabalhador – e que agora se ameaçado pela eliminação de normas de proteção.
As NRs, que impõem obrigações a empregadores e trabalhadores, foram construídas num sofisticado processo técnico de discussão tripartite, a partir de uma decisão governamental racional e pragmática, ainda do período militar, para uma demanda que segue presente.
É equivocada a apressada conclusão de que existiriam apenas para dificultar a vida do empreendedor ou para encarecer atividades. A sociedade e o empregador socialmente responsável têm nas NRs importante aliado na defesa da vida, das contas da previdência e dos negócios, num saudável ambiente concorrencial.
Helena Duarte Romera
Leomar Daroncho
Procuradores do Trabalho